Ele sorriu de orelha a orelha, olhando todas aquelas fichas a sua frente na mesa de pano verde. Finalmente as coisas estavam mudando para Jonathan Morgan., o modesto e humilde funcionário do tabelionato da cidade.
Até aquele momento, sua vida seguira a mesma rotina patética da maioria dos seres humanos, um caminho infeliz até a cova. Ele sentia que a cada segundo sua vida era extraída do corpo, e que suas oportunidades iam juntos.
Até aquele momento.
Tomado por indignação ao saber que seu amigo de infância – seu rival – estava rico, e ele, pelo contrário, tendo que sustentar três crianças e uma mulher doente, estava cada vez mais pobre.
Naquela mesma semana Jonathan decidira pedir dinheiro emprestado a seu velho colega. Quem mais ele poderia recorrer se não ao velho e bom Marcos?
Seus pais estavam mortos, não tinha irmãos e a maioria dos amigos atuais eram tão pobres quanto ele.
Ele estava farto, sim estava.
Ao entrar no luxuoso apartamento do amigo numa das melhores zonas de Nova York, sentiu as facadas da inveja rasgarem sua alma. O apartamento do amigo era cheio dos melhores e mais bonitos móveis, e cheio de futilidades como quadros, estátuas, etc.
E como não reparar na esposa dele? Alice era alta, loira, olhos verdes. Uma obra de arte criada por Afrodite.
– Você e feliz Jonathan, tem três maravilhosos filhos. – disse-lhe o amigo.
Aquilo queimou a alma de Jonathan como grama seca no verão. Como ele podia ousar dizer aquilo? ele tinha tudo que um homem poderia querer, dinheiro, uma linda mulher eu m bom emprego e mesmo assim ousava se lamentar por ser estéril e não poder ter filhos?
Lamentável.
No final, Marcos convidou-o para jantar, e depois foram ao escritório beber, e depois de algumas taças de um caro vinho de 1859, ele deixou escapar algo que mudaria a vida de Jonathan.
– Eu fiz um contrato sabe, com esse homem, Ferlin. Ele disse que eu teria tudo. Me arrependo.
Ferlin? quem seria esse? Jonathan não pode resistir, ignorando o lamento do amigo, e parou de beber, esperando que o amigo fosse mais além dos limites da consciência.
Ele obteve sucesso.
Lucius Felrin era um homem estranho, que aparecera ao seu amigo numa encruzilhada em que seu carro estragara treze anos atrás.
Naquela época Marcos e Jonathan tinham apenas 21 anos. Ambos tinham sonhos e esperanças.
Agora ele estava ali, diante do seu sonho realizado. Apostou o que não tinha para poder ganhar naquele cassino, mas apostou com uma certeza.
Esse homem, Ferlin, lhe garantira que ele iria ganhar, mas haveria um preço.
A troca equivalente ele disse.
– Você não pode ter algo, sem sacrificar outra coisa. O mundo precisa de equilíbrio.
Lucius Ferlin era um homem elegante, trajando um terno e calças pretas sobre uma camisa social vermelha. Seus cabelos pretos eram curtos e sua pele branca conservava traços finos europeus, assim como seu sotaque. Não era o tipo de pessoa que Jonathan esperava encontrar no meio de uma encruzilhada do subúrbio nova yorkino.
Algo em Ferlin o incomodara, em determinados momentos parecia que ele tinha olhos rubros, impressão dele, estava nervoso, com frio e cansado.
Queria ele estar certo.
Ele deixou o cassino com uma mala cheia de notas de dólares, com provavelmente mais de um milhão ali, era impossível dizer com certeza.
O jogo fora muito fácil, era como se os outros jogadores estivessem hipnotizados, como se as cartas que ele queria viessem a mesa.
Um sonho.
Não, certamente não, ele descobriria logo que aquilo era um pesadelo.
Estacionou o carro a frente de sua modesta casa, era um bairro pobre e perigoso, mas ele tinha precisado transformar a garagem no quarto para seu filho mais velho, Daniel.
Daniel tinha quinze anos e cuidava sozinho dos irmãos menores, Charles e Mary.
Catherine, sua esposa, estava com um câncer incurável, e infelizmente eles não tinham dinheiro para pagar por um tratamento melhor.
Mas isso mudaria agora – ele pensou.
Quando ele entrou em casa, com um sorriso tão brilhante quanto o sol do meio dia, levou um susto.
Como se o mundo tivesse desabado sobre sua cabeça, ele deixou a mala cair no chão e correu até o corpo flácido de Mary, que tinha a recém três anos.
Ela estava mergulhada numa poça de sangue, seus olhos abertos fitavam o ar, em seus lábios finos um sorriso alegre.
Ele virou os olhos para o canto, ao lado do sofá, estava Charles, com uma faca de cozinha na mão. A lamina afiada pingava sangue, nos seus olhos a loucura.
– Estávamos brincando papai.
– O que você fez? – gritou ele, saliva e lagrimas saltando junto com o desespero.
Ele repetiu a pergunta, enquanto a criança se aproximava lentamente, a lamina erguida.
– Vamos brincar papai?
O homem gelou, passando a mão nos cabelos negros, e correu em direção a cozinha.
Ele caiu de joelhos.
Daniel estava atirado no chão, com as tripas para fora do corpo. Sobre o balcão da cozinha havia um pão por fazer, provavelmente ele o preparava para Charles?
– Por quê? – disse ele.
O olhar nos olhos de Charles eram a própria morte. Olhos aqueles tão parecidos com os seus, de um azul profundo. Por quê?
– Vamos ao hospital brincar com a mamãe também? – a voz da criança ecoou fria, mas gentil.
Num ato de loucura, Jonathan pegou o banco da cozinha e jogou contra o pré-adolescente. O objeto o derrubou, afinal, Charles era magro e fraco, diferente de Daniel, que um dia jogara no time de futebol americano da escola.
Sentindo sua alma rasgar, ele pegou a faca da mão do filho e enterrou no seu estomago, a sensação era terrível. Sentir a lamina entrando lentamente na carne macia e juvenil de seu filho, sentindo o sangue brotar lentamente e impregnar o ar da cozinha, ressaltando o cheiro ferroso que já estava no ar.
A morte.
Não, não fazia sentido viver agora.
Todo o dinheiro que havia ganho, para que?
– Feliz? – soou uma voz fria, mas velha. A voz de Ferlin.
O homem, trajando as mesmas roupas da última vez que se viram, entrou na cozinha.
– Como entrou aqui? – perguntou Jonathan, levantando-se, com a faca nas mãos.
– Pode tentar me matar, mas não irá conseguir. Como sou muito bom e generoso, vim lhe dar uma explicação
– O que você quer dizer? Você é o responsável por isso?
Num ato de loucura, Jonathan voou contra Ferlin. Depois de matar seu próprio filho, matar aquele bastardo não seria problema. Sentiu a lamina entrando contra a carne dele, que diferente de seu filho era rígida, firme e fibrosa.
Lucius apenas gargalhou e empurrou Jonathan com a mão para longe, jogando-o contra os balcões da cozinha. Sentindo uma dor lancinante em suas costas, ele tentou ficar de pé.
– O que é você?
– Ora, isso é importante? – respondeu enquanto tirava a faca do seu estomago como se não fosse nada, e jogando-a ao chão. – temos um contrato, eu lhe fiz ganhar o dinheiro, e agora cobrei a divida.
– Então..foi…minha culpa?
– Certamente. Mas não se apegue a isso. Seu amigo Marcos nunca poderá ter filhos, veja pelo lado bom, você os teve até agora e ainda poderá ter outros. Use o dinheiro para salvar sua mulher. O que são três humanos tão jovens, não é? Você pelo menos poderá fazer mais.
– Então foi isso…por isso Marcos é estéril – sua voz era quase um sussurro, ele sentia suas pernas tremendo. Ergueu a cabeça, a fúria crescendo em seus olhos e boca na forma de um berro – como ousa dizer isso, seu monstro, como ousa falar assim dos meus filhos!
– Você teve o que queria, da próxima vez, não tente trapacear, tenha menos auto piedade e lute mais. Vocês humanos adoram nos culpar por suas falhas de caráter. A Verdade meu caro Morgan, é que nós não interferimos nas vidas dos mortais, salvo por esses contratos. Temos mais assuntos a tratar do que assombrar vocês.
– “nós”? – suas sobrancelhas se survarma – o que vocês são?
– Faça as contas meu caro, encruzilhadas, contratos, imunes as armas mortais. Bem, acho você deve ter alguma cultura.
– Demônios. – ele caiu de joelhos.
Ferlin apenas sorriu
– Já fiz meu ato de generosidade do ano, agora tenho mais contratos a fechar.
Quando Jonathan piscou os olhos, ele havia desaparecido.
E agora?
O que restava para ele?
Nada.
Provavelmente seria acusado de matar os filhos, quem acreditaria que um jovem de doze anos surtaria e mataria os irmãos? Ou pior, quem acreditaria que um demônio fez isso.
Ninguém.
Com a sua mão tremula, pegou a faca que tirara a vida de seus filhos, aquela arma sádica, hipócrita.
Não existia bem e mal afinal.
A faca que sempre servira para cortar o alimento dos seus filhos, cortara também a vida deles.
E agora, ceifaria a sua.
Num ato frio e único, sem hesitações, ele enfiou a lâmina em seu peito.
Tudo foi ficando escuro, e por uma curta fração de segundos, antes de finalmente cair no colo da morte, viu-a ali diante dele, com sua foice em uma mão e Charles a outra. Daniel segurava Mary no colo.
A morte parecia ser um jovem rapaz de aproximadamente vinte anos, cabelos arrepiados e pele pálida, uma expressão paciente no rosto.
– Desculpe papai – disse o pequeno Charles.
Finalmente ele se foi, com a certeza de que estaria com seus filhos, e na esperança de que sua mulher se curasse.
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