Ao errar pelas galerias, Samara viu algo que a deixou sem palavras: A maneira como as tintas estavam espalhadas na tela, formando símbolos e imagens mescladas com a moldura prateada, com finos entalhes emaranhados, tornavam aquela peça única.

Seus olhos castanhos claro cintilaram, enquanto um sorriso nascia nos cantos dos seus lábios finos e delicados. Ela se aproximou lentamente, olhou sobre os ombros para garantir que não estava sendo observada.

Será que ela deveria?

Ousaria tocar em tão majestosa obra?

Com um suspiro breve, a jovem reuniu toda a coragem que tinha, e tocou a tela. Imediatamente, seus dedos sentiram as camadas de tinta e a aspereza do painel. Era como se fagulhas de eletricidade estivessem percorrendo seu corpo.

Outro suspiro.

Ela tinha de analisá-lo, certamente este era o tipo de artefato que ela vinha procurando.

Não era qualquer artefato, oh não, esse era especial. Único.

Qualquer um que repousasse os olhos nele por mais de um minuto notaria isso, mas ela, especialmente, precisou apenas de um segundo.

Mordeu o lábio, com um sentimento de pesar a assaltando. Será que devo levá-lo?

Nervosa, Samara passou as mãos nos longos cabelos pretos, pensando.

– Será? – resmungou consigo mesma – Sim.

Seu sorriso era como o sol da manhã, brilhando intenso sobre a luz tênue das velas em seus castiçais. Sem pensar mais, ela retirou o quadro da parede de pedras acinzentadas, deixando um espaço em branco, onde outrora ocupara o retrato, com todo o cuidado que pode  deu meia volta, seguindo para o hall principal.

As paredes da galeria eram repletas de pesadas tapeçarias, quadros e estátuas, de todos os tipos e valores, retratando as mais diversas coisas.

Ela bufou.

Não adiantava, estava perdida.

Já devia estar andando há uns vinte minutos, seu braço começava a doer, por suportar o peso do quadro.

Inspirou profundamente, tentando manter-se calma, buscando dentro de sua mente algo que lhe fosse útil. Seus olhos exploraram o corredor, demorando-se num retrato de uma velha de manto negro, em meio a um campo morto, sob pálidas nuvens escuras de um céu negro.

A imagem lhe causou calafrios, era como se ela visse uma assombração. Relutante, deu um passo para trás, cerrando os punhos até que os nós dos dedos ficassem brancos.

Respirou fundo, sua mente estava lhe pregando peças.  Só podia ser isso.

Segurando a tela firme, ela marchou pelos corredores escuros. As luzes tremulantes das velas nos castiçais criavam uma atmosfera fantasmagórica sobre os quadros e estátuas empoeirados.

O Salão das Relíquias era uma área restrita na Sciri Imperius. Samara sabia que não deveria estar ali, e muito menos retirando objetos das paredes. Mas como ela poderia resistir aquele quadro?

Foi instantâneo.

Assim que botou os olhos na pintura, percebeu o seu conteúdo mágico, a energia pulsava naqueles símbolos e letras antigas, e era exatamente a peça que faltava no ritual que ela estava precisando.

Era difícil ser uma novata na Sciri Imperius, havia magos mais velhos que criavam uma verdadeira competição de poder e conhecimento. Ela estava ali só há um ano, mas seu pai a ensinara tudo que ela precisava saber.

Ela tinha o talento.

Uma gélida corrente de ar percorreu o corredor, apagando as chamas das velas nos candelabros. Ali, mergulhada nas trevas, ela sentiu o medo pondo suas garras em sua mente.

Não, ela não era fraca.

Rapidamente afastou aquela sensação odiosa e se concentrou no que deveria fazer: Luz

Puxou uma grande quantidade de ar, deixando preencher seus pulmões e lentamente expirou, soltando não só o ar, mas as amarras de seu poder, as comportas que seguravam a magia nos confins de sua alma. Imediatamente uma chama acendeu-se em sua mão esquerda, criando uma forte luz capaz de iluminar quase dez metros ao seu redor.

Ela dobrou num corredor para a direita, outro para a esquerda.

Sua mão abafou um grito mudo.

O Retrato da mulher de manto.

Será que os corredores estão encantados para confundir as pessoas? Será que estou andando em círculos?

Ela girou a cabeça sobre os ombros analisando o ambiente ao seu redor. Os mesmos quadros pomposos com molduras de madeira, prata, bronze, ouro, todos ornamentados e enfeitados, bem como as estátuas de figuras importantes, ou de criaturas estranhas. Finalmente percebeu que já passara por ali, talvez até mais de uma vez.

Um brilho sagaz cintilou em seus olhos castanhos

Enfiou a mão no bolso externo de seu sobretudo preto com bordas avermelhadas e retirou um pequeno livro de capa preta estampado com um pentagrama de prata. Folheou algumas páginas procurando a informação.

Meu pai me falou sobre isso, tenho certeza, esta aqui em algum lugar. Aqui! – Exclamou com animação.

A página branca mostrava um pequeno texto, que mais lembrava um poema com suas rimas. Mas não eram meras alegorias e metáforas sem objetivo, aquelas eram palavras de poder. Se recitadas por qualquer pessoa, mesmo um profano, ela geraria um efeito.

A mãe de Samara era uma profana, aquelas pessoas comuns, que não conheciam a magia, que achavam que ela não passava de um mito, uma história. Seu pai, por outro lado, era um importante Arcano, que ensinou tudo que podia para sua esposa. Samara herdara o dom de seu pai, podendo conjurar e controlar os elementos. Ela não precisava recitar todas aquelas palavras, bastava se lembrar delas. O dom abria portas, trabalhava de maneira subjetiva e inconsciente. Era através do dom que ela podia criar o fogo em sua mão, sem precisar de mais nada. Alguém sem o dom não seria capaz de criá-lo, talvez aquecer o ambiente, aumentar ou diminuir as chamas.

– Revele-se – murmurou

Seus olhos emanaram um brilho branco e uma onda de energia da mesma cor emanou de seu corpo. Sem perder tempo, seguiu em frente com seu andar firme e decidida como sempre.

A magia que ela invocara era rara, conhecida pelo alto escalão do Supremo Conselho Bruxo, ela servia para anular a névoa invisível de confusão deixada para proteger locais importantes como aquele.

Como se pudesse ver uma linha invisível no chão, ela deixou a sua magia lhe guiar pelo caminho.

Ela andou por diversos corredores que mais pareciam labirínticos, todos úmidos, com pedras enegrecidas e com pequenas camadas de musgo. O ambiente estava imerso em lusco-fusco, tornando difícil identificar o caminho a sua frente.

De repente, a chama em sua mão iluminou uma silhueta alta e robusta.

A figura saltou em cima dela, antes que a chama se apagasse, Samara pode ver o brilho afiado de uma adaga. Pelo tamanho e a forma do corpo, ela pode deduzir que era um homem. Pela altura, um mago.

Sim, a altura dizia muito. Era consenso que todo mago era alto. Altura significava poder e superioridade. Nunca existiria um mago com menos de 1,80 de altura e magas com 1,70. Até mesmo os profanos haviam chegado a essa conclusão, com inúmeras pesquisas comprovando que a altura estava relacionada à evolução do ser humano, e o aumento da altura da população desde as Idade Clássica.

Ela e o homem rolaram pelo chão, cada um tentando bravamente dominar o outro. Seu coração quase saltou pela boca quando ela sentiu a lamina gelada roçar no seu braço. Com um gemido baixo, ela soltou as amarras de seu poder, deixando uma onda elétrica emanar de seu corpo.  O homem gritou e voou pelo ar colidindo com a parede de pedra. Ele escorreu e bateu no chão.

A chama surgiu novamente na mão de Samara, iluminando a face de um rapaz com aproximadamente a mesma idade que ela. Seus longos cabelos pretos e lisos caindo sobre os olhos castanhos. Ela sorriu ofegante.

– Patético. Quem é você?

O rapaz levou a mão na cabeça, sentindo dor por todo o corpo. – odeio magos, sinceramente.

– Sinceramente vou lhe queimar vivo se não me responder – disse ela ferozmente, erguendo a chama em direção ao rapaz.

– Edmond – respondeu, enquanto tentava ficar de pé apoiando-se na parede – Edmond Levine

– Por que me atacou?

– Bem, achei que fosse um guarda.

– Bem, não sou. O que faz aqui?

– Se você não é um guarda, também não deveria estar aqui.  – um brilho malandro surgiu em seus olhos – Não estou certo?

– Eu tenho permissão – rebateu ela sem pensar, encarando-o nos olhos para que não percebesse sua mentira.

– Você é uma maga, não tenho por que duvidar.

– Como assim? Você não é um mago?

– Bem, digamos que eu sou. Mas não sou.

Ela estreitou os olhos, aproximando-se dele, erguendo a mão para que sua chama o iluminasse melhor. Foi impossível não notar o mau cheiro, bem como as roupas esfarrapadas. Ele usava uma calça jeans toda rasgado e uma camiseta cinza com um colete aparentemente social preto.

– Você não vive na Sciri Imperius. Ok. Entendi. O que faz nessa área restrita?

– Se eu te contar, vou ter que te matar. – ele sorriu com seus afiados dentes branco.

– Ora, ora. – ela sorriu também, afastando-se dele e pegando o quadro com os estranhos símbolos. – Temos algo em comum.

Aproveitando a deixa dela, ele abaixou-se e juntou sua adaga, guardando-a num coldre na perna direita.

– Você também está roubando? – ele gargalhou – Sério? Uma garota ousada então. Você ganhou um fã.

– Não preciso de fãs – respondeu rispidamente – e não estou roubando. Só pegando emprestado. Como entrou aqui?

– Você é muito bonita, mas não posso ficar, sinto muito.

Ele sorriu de orelha a orelha e deu as costas a ela, correndo e desaparecendo nas sombras.

– Hei, espere! – ela gritou enquanto corria atrás dele.

Samara perdeu a noção do tempo enquanto cruzava o enorme e enigmático lugar atrás de Edmond. Os quadros, estátuas e demais objetos estranhos eram curiosos demais para não se vislumbrar, mesmo que por um instante. Alguns, tão aterrorizantes que ela preferia não ter olhando, outros tão maravilhosos que ela queria ter mais tempo para analisá-los.

Tudo ali era impregnado com o cheiro da magia, e lhe davam uma sensação característica na testa.

Depois de dobrar em um canto e percorrer um longo corredor com tapete vermelho no chão, a forte chama trêmula em suas mãos iluminou uma grande porta de ferro: a saída.

Ela sorriu para si mesma, levando a mão ao trinco de bronze. Estava girando a maçaneta quando ouviu um grito vindo de algum lugar naquelas galerias. Não tinha duvidas, era a voz de Edmond. Apesar da enorme vontade de ir embora e abandonar tudo aquilo – principalmente ele – sua consciência não deixou.

Ela virou, dando as costas à saída e correndo em direção do local do grito, cruzando um portal de pedras. Deparou-se com uma pequena sala cheia de objetos estranhos. Havia tochas penduras nas paredes, iluminando as sinistras peças dispostas em prateleiras.

A situação não parecia boa para Edmond, ele estava no meio de três homens encapuzados. Um deles virou o rosto sobre os ombros avistando-a.

– Saia daqui garota, se não quiser ter o mesmo destino que ele.

Apesar de não poder ver os olhos deles, ocultos por capuzes e longos mantos púrpura, ela pode reconhecer o tom sério da ameaça na voz deles. Encarou por alguns segundos os três homens, que ainda trajavam máscaras brancas com símbolos estranhos.

– Saia daqui – disse Edmond.

Ele tinha duas adagas nas mãos, uma posição de batalha e um tom selvagem na voz.

– Mal nos conhecemos e já vou ter que te salvar? – ela falou com um tom firme, mas debochado – Olha, seja lá quem vocês três são, com certeza não fazem parte da escola. Acho melhor vocês saírem enquanto estou de bom humor.

Os três homens riram, um deles ergueu a mão.

– Ora, os jovens de hoje em dia estão mais burros do que eu pensava.

Com um flash, no que pareceu ser um piscar de olhos, raios emergiram dos dedos dele, criando um luminoso relâmpago que cruzou a sala em direção a Samara.

– NÃO – gritou Edmond, numa tentativa lenta demais de impedir o golpe.

Samara, por outro lado, não moveu nenhum músculo.

O Raio colidiu com o que parecia ser uma parede invisível na frente da garota, se espalhando no ar e deixando uma camada fina de eletricidade pairando ao redor dela.

Seu sorriso dizia tudo – Não me subestime. Nenhum aprendiz da Sciri Imperius entraria nessas galerias sem um escudo mágico. E eu particularmente nunca ameaçaria três estranhos mascarados sem proteção.

Ela cerrou os punhos e a eletricidade contida na barreira juntou-se num único ponto e cruzou o ar de volta a seu criador.

O mago tentou defender-se, erguendo a mão esquerda numa pífia tentativa de conjurar alguma magia, mas seu movimento fora lerdo demais e o relâmpago lhe acertou o peito, arremessando-o contra a parede de pedra.

Aproveitando o momento, Edmond saltou contra o mascarado mais próximo, e sua adaga trouxe o sangue dele a tona, cortando-o logo acima do estômago. Seu movimento veloz não deixou tempo para defesa.

O terceiro, mais esperto, ergueu as duas mãos lançando raios na direção dos dois. Indefeso, Edmond colidiu contra uma estante, escorrendo para o chão.

Protegida por seu escudo, Samara aproveitou a chance para invocar seu dom, liberando-o na sala. Sentiu sua mente cobrir cada canto empoeirado da sala, até chegar às tochas flamejantes. De olhos fechados, ela murmurou:

– Sinta um pouco do gosto do inferno.

Abrindo os olhos subitamente, ela tomou o controle do fogo, que se ergueu como serpentes sobre o homem. De cada canto da sala, uma língua de fogo atacou o homem.

Ele gritou desesperado, mas seu duplo ataque havia deixado-o indefeso.

Desde seu primeiro dia tinha mostrado habilidades inatas. Era a mais promissora aprendiza do Coven Draco e seu nome era cotada como uma das futuras grandes magas da sua época. Ela não sabia por que, e não creditava isso a nada de especial. Sua infância tinha sido normal, seus pais não foram assassinados por nenhum ser das trevas e tampouco era adotada. Ela era apenas ela. Seu Mestre lhe disse uma vez que a magia dos magos era arcana, vinda do aprendizado e do estudo. Todos tinham o mesmo potencial, mas alguns desenvolviam, outros não. Samara sempre foi dedicada, ela não costumava ler ou perder horas da vida debruçada de livros. Isso ela deixava para os membros do Coven Noctua. Para ela, a magia era algo da vida. Ela aplicava seu dom a cada respiração, ela entendia, assim como seu mestre lhe dissera uma vez, que tudo na vida era magia. Do nascimento à morte.

Assistindo o homem queimar lentamente, agonizando, ela suspirou. Matar era errado. Ela não seria como eles. Ergueu a mão e deixou seu dom amenizar as chamas, sugando aquele calor e energia para dentro de si, para ser usado numa futura magia. Transmutação era outra habilidade dos magos, seu Mestre havia lhe ensinado o princípio básico do mundo: nada se perdia, mas se transformava. Era assim que ela conseguia juntar os elementos necessários para criar o fogo, e transformando seu dom em combustível. Assim como o fogo ou a eletricidade, seu dom era energia.

O homem a essa altura já estava de joelhos, era difícil dizer o nível das queimaduras, já que ele estava todo coberto. Isso não era importante, ele estava vivo e poderia se recuperar por magia mais tarde, quando eles estivessem bem longe.

Ela ajudou Edmond a se levantar, pondo seu braço direito sobre seus ombros e deixou as galerias, esperava não voltar tão cedo.

Quando passou pela porta, pegou o quadro que havia roubado, e deixado ali cuidadosamente.